Atenção: spoilers sobre A Substância (2024)
Nunca tive uma experiência tão intensa no cinema quando a vez que assisti 'A Substância (2024)'. Duas senhoras sentadas ao meu lado exclamaram "que filme horrível" e foram embora na metade da sessão. Mais para o fim do filme, algumas pessoas começaram a rir da insanidade do ato final, quando o Monstro ElisaSue começa a se arrumar para apresentar o especial de Ano Novo. Eu não achei graça e as risadas me incomodaram.
Demi Moore em 'A Substância (2024)' |
Quando cheguei em casa, comecei a pensar sobre a obra de Coraline Fargeat e conclui: o mundo é sempre mais cruel com as mulheres. Recentemente, por exemplo, alguns memes começaram a brincar sobre versões mais novas de cantoras que teriam tomado a substância como Cher, cuja versão seria a Dua Lipa, e Madonna com Sabrina Carpenter. Até aí, uma brincadeira inofensiva.
A questão só piorou quando fizeram uma montagem com a foto de Madonna, claramente debilitada, ao lado de Sabrina com os dizeres: "Alguém não respeitou o equilíbrio" - dando a entender que Sabrina teria roubado a vitalidade da cantora. Por que nós, mulheres, não temos o direito de envelhecer? Ou melhor, por que só temos esse direito se continuarmos lindas e maravilhosas - o típico "você está ótima para sua idade" como acontece com a própria Demi Moore?
Em 'A Substância (2024)', conhecemos Elisabeth Sparkles, vivida por Demi, uma grande atriz que ganhou até uma Calçada da Fama em Hollywood, nos Estados Unidos. Com o passar dos anos, ela tem seu próprio programa fitness - inspirada no sucesso de Jane Fonda nos anos 1980 - mas o seu chefe, papel de Dennis Quaid, quer tirá-la do ar por ser "velha demais". Deprimida, ela sofre um acidente de carro e o enfermeiro do Hospital no qual ela é atendida lhe oferece a substância, prometendo uma melhor versão dela mesma.
Demi Moore no papel definidor de sua carreira |
Ao sair do hospital, ela encontra um antigo colega de classe que a paquera. A atriz, claramente, não sente nenhum tipo de atração por ele, apenas pega seu número para ser simpática e por se sentir sozinha. E não é isso que acontece nas vidas de muitas mulheres? Às vezes damos chances para pessoas pelas quais nem nos sentimos atraídas, apenas por medo de nos sentirmos sozinhas.
E não se enganem: homens não dão chance para mulheres que não acham atraentes - e friso no "atraentes" e não "bonitas" porque há uma diferença. Nunca vi nenhum de meus amigos ou parentes homens ficarem com mulheres que não sentiam atração apenas porque elas eram fofas ou faziam favores e cuidavam bem deles: nós mulheres sim.
Por quê? Eu não tenho a resposta para esse questionamento, mas sei que é um problema inerente do que é ser mulher. Elisabeth passa por isso após marcar um encontro com esse colega e, por própria insegurança de sua aparência, se isolar novamente. Ela se arrumou toda para ver um homem que ela nem queria, por medo de ficar sozinha. E esse medo era tanto que ficou paralisada e permaneceu como começou: só.
Margaret Qualley - em uma grande performance - dá vida a Sue |
O sentimento de Elisa com sua própria aparência é de nojo, apesar de serem os homens de sua vida, em especial seu chefe, quem nos dão ranço. O enfermeiro que lhe indicou a substância reaparece no decorrer do filme, totalmente envelhecido, e pergunta como Elisabeth está lidando com a situação de sua versão mais nova, Sue, roubando toda a sua essência. Ou seja, ele sabia desde o começo que isso aconteceria.
Ao invés de alertá-la ou nem indicá-la para a substância, ele fez questão de dissuadi-la. Elisabeth, desesperada do jeito que estava para parecer mais jovem e bela, provavelmente não escutaria nenhum aviso. Porém é curioso que um profissional da saúde - que deveria respeitar a integridade dos pacientes - foi quem lhe introduziu à substância.
Essa situação não é fora da realidade: no Brasil, o número de busca por procedimentos estéticos aumentou em 390%, de acordo com estudo da Sociedade Brasileira de Dermatologia em 2023. São dentistas fazendo harmonização facial - com resultados desastrosos - são pseudoesteticistas fazendo peelings perigosos - como no caso da influencer Natalia Becker - ou até profissionais renomados indicando a inserção de PMMA - um componente plástico que pode causar infecção generalizada.
Tudo em nome da beleza, assim como a própria Elisabeth fez. A estrela adquiriu uma substância sem saber a procedência, apenas com a garantia que seria uma melhor versão de si - e não se importou com as consequências e sim com o resultado imediato. Assim, surge Sue, vivida por Margaret Qualley: uma Elisabeth mais bonita, mais disposta, mais sexy, mais tudo do bom e do melhor.
Sue: uma versão melhor de Elisabeth |
Sue tem uma beleza irreal - tanto que é inatingível até para a atriz na vida real. Margaret teve que usar próteses nos seios e talvez até em outros lugares para alcançar esse patamar de sensualidade. A pele dela não tem manchas ou celulite e nem estrias. Além disso, Sue está sempre descansada e chamando a atenção por onde passa: a definição de perfeição.
Jovem e com tantas possibilidades à sua frente, Sue se cansa de alternar os dias com Elisabeth e acaba a deixando trancada, em um quarto escuro, fingindo que ela não existe e apenas se aproveitando dela. Nenhuma das duas respeita o equilíbrio: Sue quer mais tempo para aproveitar sua juventude enquanto Elisabeth desperdiça seus dias, deprimida, por saber que nunca alcançará aquele nível de plenitude. Ambas esquecem que são uma só.
Ao longo do filme, a personagem Sue ganha close ups de seu corpo - que ao assistir no cinema, confesso, me senti incomodada por ser um pouco demais - e uma cena de dança sensual, algo que Elisabeth sente que não poderia fazer em sua idade. Para ela, seu auge já passou e Sue é sua única chance.
Dennis Quaid como o detestável chefe de Elisabeth e Sue |
Outro ponto que me chamou atenção no filme foi o fato de que Elisabeth, ao criar sua versão Sue, resolve voltar e provar para o seu ex-chefe que pode ser a melhor, ganhando o programa que, outrora era dela na emissora. Sue poderia ter começado seu próprio império fitness, abrir uma empresa e competir de frente com o ex-chefe, criando um ambiente mais inclusivo e empoderado.
Mas como essa seria uma opção para ela se, nós mulheres, fomos ensinadas a agradar desde cedo? A seguir as regras que nos são impostas? É o caminho natural voltar para o que conhece e tentar satisfazer quem lhe fez mal, mesmo que isso coloque sua própria saúde mental e física em jogo. Porque a questão é mostrar para o outro que conseguimos.
Essa realização nos faz perceber como o papel da mulher na sociedade é totalmente voltada para a satisfação masculina. Em nenhum momento do filme, Elisabeth ou Sue pensam no que querem fazer por elas - as duas buscam validação em todos os lugares, menos nelas mesmas.
A preocupação com a beleza é tanta que ela se transforma no Monstro ElisaSue |
Outra cena que exemplifica bem a necessidade de agradar os outros, mesmo que nos faça mal, é quanto Sue sorri para seu chefe apenas porque ele a pede. Na ocasião, ela estava perdendo os dentes e enfrentando as consequências por não respeitar o equilíbrio.
Muitas vezes nos pedem para sorrir ou fazer algo que não queremos e, nós, mulheres, aceitamos para não sermos rudes ou para não constranger a outra pessoa. E quanto à nossos sentimentos? A dificuldade de nos impormos no mundo torna a nossa vida mais solitária e bem menos satisfatória.
Poderia escrever por horas sobre cada nuance deste filme e a genialidade de Coralie em fazer um body horror abordando o envelhecimento e a ditadura da beleza - dois caminhos que se repelem e se atraem ao longo da vida de uma mulher.
Um body horror de respeito |
A mais atual trend das redes sociais é 'Magras, Magras, Magras', enaltecendo o corpo magro que fez tanto sucesso no final dos anos 2000. Se você é magra natural, ótimo, a questão aqui não é com você e sim como passamos da era da positividade corporal para o enaltecimento de apenas um padrão de corpo - e todas as alternativas, não saudáveis, para alcançá-lo.
O maior ensinamento de 'A Substância' é de que Elisabeth e Sue são "uma", ou seja, o que acontece com uma afeta a outra. Se você não se cuidar agora, enfrentará as consequências mais tarde. Se você não se aceitar agora, talvez seja tarde demais no futuro. Se ame, mesmo quando for muito difícil - é o melhor que pode oferecer ao seu "eu" daqui a 30, 40 anos.
Se não, o preço que você pagará pode ser alto demais.