A fórmula para se criar uma comédia romântica perfeita não é difícil de encontrar: basta colocar um ou mais casais em situações complicadas de encontros e desencontros sem se esquecer, é claro, do final feliz. Mas, o filme Cheryomushki de 1963, pega esse roteiro clichê e adiciona canções, com o objetivo de tratar do real assunto da história: o socialismo.
A "perfeita" mistura de socialismo e romance LenFilm/Divulgação/GIF
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Baseada na ópera de três atos do famoso compositor russo Dmitri Shostakovich e do libreto escrito por Vladmir Mass e Mikhail Chervinsky, a Cheryomushki é também conhecida por ser distrito de casas famoso, embora precário, no sudoeste de Moscow, na Rússia (antiga URSS). Construída no fim dos anos 1950, Cheryomushki significa cerejeira e foi plantada por milhares de pessoas para decorar as calçadas de novos edifícios pós Segunda Guerra Mundial. Aliás, algumas décadas depois esse distrito seria conhecido como a Царское село, ou seja, Vila Real, já que foram feitas reformas e colocados prédios da mais alta qualidade. Que ironia, não é mesmo?
Mas não se engane: a ópera, lançada em 1959, não poderia ser mais diferente do filme produzido pela LenFilm (a segunda maior produtora de filmes soviéticos do país nos anos 1960, que continua funcionando até hoje). Isso porque, enquanto a ópera satiriza a corrupção dos oficiais soviéticos, que esperam receber propina para ceder moradias aos cidadãos, o filme se foca apenas no final feliz dos enamorados e de como viver na Cheryomushki é o paraíso na Terra, ou seja, como o socialismo é a solução para os problemas do mundo.
O filme, lançado em 1963, começa quando conhecemos o carismático Boris, vivido por Vladimir Vasilyev, que está à procura do amor, mas acaba encontrando, de fato, o seu amigo Sergei, interpretado por Vladimir Zemlyanikin, que está prestes a entregar uma obra de arte para seu chefe. Boris, então, decide ir junto e lá acaba se apaixonando pela guia do museu, a tímida Lida. Apesar das recusas de Lida (Olga Zabotkina), Boris não desiste fácil e vai atrás da amada, que foge para se encontrar com seus amigos recém-casados Sasha (Gennadi Bortnikov) e Masha (Marina Khotuntseva), que lamentam por não ter um lugar só deles. E é a partir daí que a história toma rumo: o prédio em que Lida e seus amigos moram desaba e eles finalmente começam a mudança para a querida Cheryomushki.
Todos desejam se mudar a qualquer custo para a Cheryomushki LenFilm/Divulgação/GIF
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É lá, aliás, que a amada de Sergei, a trabalhadora Lyusya (Svetlana Zhivankova) trabalha e espera que ele declare seu amor para ela, para que ambos possam casar e se mudarem para o amado prédio. O problema é que há uma demora na distribuição de chaves porque o encarregado, Vasili Merkuriev (Fedor Drebednev) quer um flat com quatro dormitórios para sua noiva, a vaidosa Vava (Marina Polbentseva). E se isso, apenas, já seria dor de cabeça para qualquer um, em Cheryomushki, nada consegue tirar a felicidade dos protagonistas, já que o distrito era, tanto no filme quanto na vida real, conhecido como uma "metáfora da modernidade", como o livro Tracing Modernity: Manifestations of the Modern in Architecture and the City de Mari Hvattum e Christian Hermansen faz questão de ressaltar.
Cheryomushki é uma área residencial compacta com todas as comodidades modernas, construída com matérias pré-fabricados, ou seja, feita do modo mais rápido e barato possível, tornando-se assim, a primeira micro habitação desse tipo na Europa. E o lote ideal para novos recomeços.
Portanto, se a ópera pretende denunciar os abusos de poder do Estado Soviético, entre suas entrelinhas, o filme se foca em mostrar a eficácia do governo ao amparar os moradores despejados de suas antigas moradias, já que não demora menos que alguns minutos para que Lida e seus amigos ganhem uma permuta e sejam transportados para sua nova casa. O único empecilho, no longa-metragem, é o corrupto Vasili, que acaba ganhando o final infeliz que merece e que toda a comédia romântica preza.
O casal tem um dos melhores duetos do filme LenFilm/Divulgação/GIF |
Por isso não me surpreende que de acordo com o livro Shostakovich: A Life de Laurel Fray, o compositor estava bem relutante em escrever mais músicas para o filme, que estava sendo dirigido por Gerbert Rapport. Essa foi a última vez em que Shostakovich se aprofundou no gênero de comédia musical.
Porque, apesar de ser um entretenimento leve, Cheryomushki nunca consegue se firmar em apenas um gênero e ao dar uma ênfase a igualdade para todos do socialismo acaba perdendo a crítica da obra original, deixando o roteiro bobo demais. Até mesmo para uma cidade de cerejas.
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