Slider

A arte do clássico noir mexicano A Deusa Ajoelhada (1947)

O gênero de filme noir pode até ter se aperfeiçoado nos Estados Unidos, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, mas o México não ficou nada atrás dessa façanha. A prova disso é o filme A Deusa Ajoelhada (La Diosa Arrodillada), de 1947. 

Estrelado pelas duas maiores estrelas da época, a maravilhosa María Félix e o charmoso Arturo de Córdova, conhecemos a história de Antonio Ituarte, um marido que tenta ser fiel à sua esposa doente, Helena (Rosario Granados), mas acaba se envolvendo com Raquel Serrano, a deusa por quem todos devem se ajoelhar. 

Filmado em preto e branco e bancado pelo famoso estúdio Panamerican Films S.A do México, A Deusa Ajoelhada (1947) é um exemplo clássico do gênero noir: temos a femme fatale, que leva seu homem ao mau caminho enquanto ele, apaixonado e sem escrúpulos, faz de tudo para garantir seu amor. Como se isso já não bastasse existe ainda uma trama paralela de assassinato e perigo que revela como os personagens são desprezíveis, por mais que a audiência não deixe de torcer por eles. 
Roberto Galvadón, o diretor da película, era um expert em melodramas e toda sua filmografia ficou marcada por essa extravagância detalhista e pela sua obsessão em dissecar a vida burguesa, o que se conectava, muito bem, ao estilo cinematográfico de outros países. Classe, afinal, é universal. 

O arquear de sobrancelhas de Felíx era uma de suas marcas registradas           Panamerican Films/Gif
Todos os membros da equipe cinematográfica, aliás, se esforçaram para que o filme fosse tão visualmente belo quanto sua história fosse envolvente. As vestimentas da estrela María Felíx e do restante do elenco foram coordenadas pelas figurinistas Lilian Oppenheim e Aurora Mainez, e representam as características das personagens, enquanto que, a cenografia de Manuel Fontanals, enfatiza o ambiente e as situações surreais presentes nesse drama noir. 

Essa caracterização se inicia pelas referências nada sutis do filme. Um exemplo? Raquel, decidida a acabar com seu relacionamento com Antonio, lhe escreve uma carta avisando que ele não aprovaria o passado dela e pede que os dois se separem. Já ele, alheio a essa decisão, resolve por si mesmo não viajar para Guadalajara. O motivo? Ao ver um outdoor do lado de fora de seu escritório sobre um perfume chamado Deseo, ou seja, Desejo, que o faz lembrar de Raquel. Sobre isso, Ituarte revela que o desejo é "uma força que cresce, toma forma, se torna livre, maior do que você. Então, acaba nos destruindo e pior, acaba destruindo as pessoas próximas à nós." Logo depois, sua esposa, Helena lhe telefona. O telespectador sabe disso pela foto dela que está "convenientemente" colocada ao lado do telefone. Os sinais estão sempre à vista neste filme e nem o mais desavisado dos espectadores pode perdê-los. 

Panamerican Films/Divulgação/Montagem
Outro prenúncio importante do filme acontece quando Antonio segue Raquel, que se transformou um uma corista, até o Panamá, onde ela se apresenta em um clube chamado Panama's Paradise (O Paraíso de Panamá). Raquel é, portanto, o paraíso inalcançável de Ituarte. Mas, afinal, por que o filme tem o nome de A Deusa Ajoelhada? Baseado na história do romancista Ladislas Fodor, a femme fatale Raquel é, além de uma mulher da noite, uma modelo que posa nua, para escultores. Antonio não saberia disso se sua esposa não tivesse insistido na compra de uma estátua para a mais nova fonte de sua casa. É no estúdio de um amigo artista que ele se depara com a Raquel e sua Deusa Ajoelhada, a escultura feita a partir do corpo dela.   


Antonio se afunda cada vez mais em seu desejo                  Panamerican Films/Divulgação

Praticamente a primeira metade do filme, que tem 90 minutos de duração, mostra a personagem de Antonio maravilhado com a beleza de Raquel e, por consequência, sua escultura. Posicionada na fonte, A Deusa Ajoelhada é vista por todos os ângulos imagináveis: quando Ituarte está em seu escritório particular e pela sala de jantar, numa clara oposição ao retrato de Helena. A estátua, portanto, age como uma maldição entre o casamento de Antonio e Helena: sempre à espreita, amaldiçoando, inclusive, o aniversário de bodas do casal, no qual a trama tem seu clímax. 

O produtor de arte Manuel Fontanals começou a trabalhar no mundo cinematográfico em 1926 como um figurinista, o que, talvez, lhe tenha dado um olho mais crítico ao lidar com tais detalhes das cenas. Podemos perceber isso pela contraposição do quadro representando Helena, em cima da lareira, e a estátua de Raquel, no pátio. O primeiro remete ao amor quente e confortável de sua esposa. O segundo é o amor frio, excitante. 


Panamerican Films/Divulgação/Montagem
E não é só isso que Manuel representa em seus cenários: ao retratar as duas mulheres mais importantes da vida de Antonio, o produtor artístico consegue deixar implícito o fato de que elas vem de lugares diferentes, apenas pelas mobílias que lhe cercam. Helena tem uma casa luxuosa, repleta de esculturas e obras de artes. Já Raquel está sempre em quartos de hotéis diferentes, mal mobiliados e sem vida. Isso não impede que Antonio se sinta mais à vontade com Raquel, tendo seus maiores momentos de paixão em um simples sofá. No quarto que ele dividia com a esposa, a cruz acima deles já diz tudo: Helena é pura e não é isso que Antonio procura. 

Panamerican Films/Divulgação/Montagem
O narcisismo de Raquel e Antonio é óbvio se observarmos mais um elemento da cenografia: o espelho. É esse objeto que segue os protagonistas em seus momentos mais reflexivos. Isso acontece, por exemplo, quando Raquel senta-se sozinha na mesa, que outrora, recebia inúmeros convidados de Helena e Antonio. Atrás dela, há um grande espelho, julgando-a pelos seus atos, que a deixaram sozinha mesmo ao lado de Ituarte. Os dois estavam tão apaixonados pela imagem de seus próprios desejos que recusavam perceber suas consequências. Tanto que, a última parte do filme se define em culpa: Antonio se sente mal por tudo que fez e mais uma vez recorre ao seu isqueiro para tentar consertar tudo, durante a cena final eletrizante de A Deusa Ajoelhada (1947). 

Panamerican Films/Divulgação
Com a personalidade de Raquel, contudo, fica uma dúvida: Será que uma deusa ajoelha-se diante de alguém? A femme fatale, que ama à si mesma e sua própria imagem acima de tudo e todos, jamais. Raquel Serrano, então, nunca!


0

Nenhum comentário

Postar um comentário

both, mystorymag
© all rights reserved
made with by templateszoo