*spoilers sobre o filme Tudo Sobre a Minha Mãe (1999)
O filme Tudo Sobre a Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre), de 1999 é um dos mais premiados da carreira do cineasta Pedro Almodóvar, afinal a facilidade do diretor em entender a complexidade da vida feminina, de compreender o nicho familiar e mostrar como tantas vidas e mulheres diferentes podem se unir, para sempre, de uma hora para outra, são a sua especialidade.
Divulgação |
Em Tudo Sobre Minha Mãe, vemos tudo isso em ação, especialmente, no epílogo do filme, no qual Almodóvar dedica a todas as mães do mundo, mas em especial à três artistas: "A Bette Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider...à todas as atrizes que interpretaram atrizes, à todas as mulheres que atuam, aos homens que atuam e se tornam mulheres, à todas as pessoas que querem ser mães. Á minha mãe." Em uma entrevista, aliás, ele revela que poderia ter expandido a lista para incluir Gloria Swanson, Lana Turner, Judy Garland e Ava Gardner, mas ele não o fez. Então por que ele escolheu essas três atrizes em particular? Cada uma delas tinha uma relação particular com seus filhos e que englobam o universo de Tudo Sobre Minha Mãe.
Bette Davis
Uma das cenas iniciais do filme Tudo Sobre Minha Mãe é quando Manuela (vivida por Cecilia Roth) e seu filho Esteban (Eloy Azírin) estão em casa, preparando-se para jantar na frente da televisão, assistindo ao filme A Malvada, o original All About Eve, de 1950. Nele, conhecemos Margo Channing (Bette Davis), uma atriz mais velha que sofre retaliação de uma atriz mais nova e sem escrúpulos, Eve Harrington (Anne Baxter), que rouba seu lugar na sua peça e consequentemente, quer roubar sua vida.
O filho de Manuela reclama da dublagem do título do filme, que em espanhol fica Eva Desnuda, e ratifica que o filme deveria ser chamado Todo Sobre Eva (All About Eve), como é no original. Escritor, ele finalmente dá o título para uma história que vem escrevendo sobre sua mãe: a Todo Sobre Mi Madre (Tudo sobre Minha Mãe), título também do filme de Almodóvar.
Trecho do filme Tudo Sobre Minha Mãe Divulgação |
Além dessa relação inicial com Bette Davis, mais para frente quando o filho de Manuela morre, ela acaba se relacionando e atuando como secretária pessoal de uma atriz que seu filho adorava, a Huma Rojo (Marisa Paredes), que está em cartaz na peça Um Bonde Chamado Desejo. Huma está se relacionando com Nina, a atriz que interpreta sua irmã Stella, na peça. Quando Nina passa mal, é Manuela que entra em seu lugar e interpreta a personagem, ganhando aplausos tremendos. Assim, ela é acusada de dar uma de Eve Harrington, ou seja, roubar os holofotes de outra pessoa.
Mas, apesar de Almodovar ter usado A Malvada como uma das bases para o seu filme, podemos também relacionar a escolha da dedicatória com a própria vida de Bette Davis como mãe. A atriz teve três filhos: uma biológica chamada Barbara Davis (B.D), com seu terceiro marido, William Grant Sherry, e adotou outros dois, Michael e Margot (uma criança com deficiências mentais) com seu quarto marido Gary Merill, que ela conheceu atuando em A Malvada. Ela e sua B.D eram super unidas, até que sua filha resolveu se casar, aos 16 anos de idade, com um homem 13 anos mais velho, chamado Eliot Hyman. De acordo com o artigo da Vanity Fair, Bette Davis culpou o casamento repentino de sua filha pela sua má relação, anos depois, culminando na publicação de um livro de sua filha contando tudo sobre sua vida com Bette Davis chamado My Mother's Keeper.
B.D Hyman, a única filha biológica de Davis Divulgação |
Quando ela morreu, em 1989, Bette Davis deixou sua fortuna, estimada em quase 1 milhão de dólares, para seu filho Michael e o resto para sua secretária pessoal Kathryn Sermack. Ela não deixou nada para sua filha com necessidades especiais, a Margot. Foi Gary Merill quem cuidou das despesas de sua filha até sua morte, criando um fundo que é cuidado até hoje pelo seu filho e irmão de Margot, Michael.
Bette Davis foi uma mãe que nunca conseguiu prover aos seus filhos o amor que poderia, quase como a mãe de Rosa, no filme Tudo Sobre Minha Mãe. Ela também deixava seus filhos aos cuidados dos outros e não sabia como se relacionar com sua filha, vivida por Penélope Cruz. A separação entre elas como mãe e filha era aparente, assim como a falta de conexão de Davis com seus filhos.
Rosa e sua mãe Divulgação |
Bette Davis, representa, portanto, a separação entre mãe e filho, afinal, apesar de todo o amor e cuidado, nem sempre conseguimos nos entender com nossos filhos - eles são pessoas diferentes com seus próprios objetivos. E um dia sua mãe terá que lhe deixar ir e o relacionamento muda para sempre e a amargura toma conta. Bette Davis representa, portanto, o distanciamento.
Gena Rowlands
Já Gena Rowlands, a atriz, não teve uma vida tão complicada quanto Bette Davis. Casada com o renomado diretor John Cassavetes de 1954 até 1989 (o ano de sua morte), o casal teve três filhos e viviam uma vida familiar pacífica e muito feliz. Gena era musa de John, já que ele criava muito de seus papeis tendo sua linda esposa em mente. Mesmo assim, Gena era uma mulher forte, que conseguia atuar diferentes personalidades em todos os seus filmes.
Em Tudo Sobre Minha Mãe, há uma cena que faz referência direta à atriz, assim como o filme A Malvada faz com Bette Davis. Na cena no começo do filme, em que o filho de Manuela, Esteban, vai procurar sua atriz favorita, Huma Rojo, para conseguir um autógrafo, ele acaba atropelado e morre. Essa é uma referência direta ao filme de Cassavetes, Noite de Estreia (Opening Night), de 1977, na qual Gena interpreta uma atriz que observa um jovem fã morrer bem na sua frente para conseguir seu autógrafo.
Cena a cena: Noite de Estreia (1977), acima e Tudo Sobre Minha Mãe abaixo |
Também podemos ver influência de outro filme de Cassavetes na história: a de Glória, de 1980, também vivida por Gena Rowlands. Neste filme, ela se torna a guardiã de um jovem cujo os pais foram mortos pela máfia. Já em Tudo sobre Minha Mãe, Manuela se torna a guardiã legal do filho da irmã Rosa sem grandes problemas. O que as duas tem em comum? A capacidade de protegerem seus filhos a qualquer custo, afastando-se de quem for possível e tomando todas as medidas necessárias para cuidar deles. Essa qualidade combina perfeitamente com a personalidade de Manuela, a mãe central da trama. É ela que chamaríamos, portanto, de elo de aproximação do filme.
Divulgação/Montagem |
Enquanto a figura de Davis significa a separação, a de Gena Rowlands representa o cuidado entre mãe e filho e a busca de Manuela de sempre ter alguém por quem estar ninando em seus braços. Manuela é o apelo universal da figura maternal, da harmonia familiar.
Romy Schneider
Se Bette Davis representaria a separação natural e progressiva entre mãe e filho na história e Gena Rowlands, o cuidado, Romy Schneider representa o amor universal de mãe. A história da atriz austríaca, aliás, é a mais trágica entre as três artistas citadas. Ela nasceu Rosemarie Magdalena Albach em 1938 e já aos 16 anos de idade fazia sucesso como a imperatriz Sissi na trilogia Sissi a Imperatriz, que nós da Caixa já fizemos uma matéria especial sobre a obra.
Mas foi ao se mudar para a França que Romy ganhou fama internacional e as maiores aclamações de sua carreira. No entanto, a sua vida ficou marcada pela tragédia. Logo depois de um noivado de mais de cinco anos com o ator francês Alain Delon, ele se casou com outra mulher e Romy, uns três anos depois, dava à luz seu primeiro filho, David Haubenstock fruto do casamento com o cenógrafo Harry Meyen. Os dois se separaram em 1975 e quatro anos depois, Harry se suicidava - já que sofreu de depressão durante a vida toda, agravada depois de ser torturado pela Gestapo na Segunda Guerra Mundial por ser judeu.
Romy e seu filho David no filme A Morte Ao Vivo (1980) Divulgação |
Outra tragédia viria: aos 14 anos de idade, David tentava subir o portão da casa de sua família, pois não queria incomodar seus avós e acabou se desequilibrando e caiu com o corpo atravessado pelos portões de ferro. Romy, apesar de ter uma segunda filha com Daniel Biasini, Sarah Biasini, não superou a perda de seu primogênito e acabou morrendo um ano depois, em 1982, por uma parada cardíaca depois de tanto abuso de remédios.
Sobre ela e sua menção no filme Tudo Sobre Minha Mãe, Almodóvar afirmou no kit de imprensa da obra que foi a atuação de Romy no filme O Importante é Amar (L'important c'est d'aimer) de 1975 que o inspirou a modelar a vida de Sebastian como escritor e usando isso como ponto de partida para a jornada de sua mãe Manuela: misturando a ficção do que Sebastian achava ser a vida de Manuela com o que realmente era. Mas no filme O Importante é Amar também há a questão do amor: a personagem de Romy ama a qualquer custo, sentindo a nostalgia do que é ser amada até quando não é mais.
Em Tudo Sobre Minha Mãe, a personagem de Rosa, vivida por Penelópe Cruz, sente exatamente isso. Uma freira, ela acaba se apaixonando pela travesti Lola e fica grávida com o seu filho. Mesmo doente, ao descobrir que tem AIDS, Rosa leva sua gravidez adiante e dá todo o amor para seu recém-nascido filho, fazendo no final, o sacrifício maior do amor: dar à luz seu filho, também chamado Sebastian, e morrer durante o trágico parto.
Divulgação |
Para Rosa, o amor aos seus pais, o amor à sua família, o amor pelo próximo, o amor ao seu filho e aos seus amigos é que a guiaram durante seus dias na Terra. Ela era toda amor, assim como Romy Schneider era para com seus filhos. Ela amava demais, sem medidas, era simplesmente amor - amor de mãe.
Que post emocionante. Parabéns.
ResponderExcluir