*spoilers do filme O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943)
O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) pode até não ser o primeiro filme que muitas pessoas colocariam em sua lista de melhores filmes de comédia, mas ele com certeza merece estar em qualquer uma delas. A primeira vez que assisti o filme era adolescente, quando as locadoras ainda sobreviviam, e depois de ver a película sempre considerei Don Ameche um ator incrível, assim como Gene Tierney.
O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) pode até não ser o primeiro filme que muitas pessoas colocariam em sua lista de melhores filmes de comédia, mas ele com certeza merece estar em qualquer uma delas. A primeira vez que assisti o filme era adolescente, quando as locadoras ainda sobreviviam, e depois de ver a película sempre considerei Don Ameche um ator incrível, assim como Gene Tierney.
No entanto, nossa história sobre o filme começa bem antes do século XXI, quando uma peça intitulada Birthday (em tradução, Aniversário) chamou a atenção do diretor Ernst Lubitsch. O cineasta alemão já havia dirigido diversos outros sucessos como Alvorada do Amor (The Love Parade, 1929) - a estreia de Jeanette MacDonald nos cinemas - ,Ninotchka (idem, 1939), A Loja da Esquina (The Shop Around The Corner, 1940) e Ser ou Não Ser (To Be or Not to Be, 1942) e era conhecido pelo 'Toque Lubitsch", ou seja, por aquele humor e estilo sofisticado que diferenciava, na hora, suas películas das de outros diretores.
Don Ameche e Gene Tierney em cena do filme O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) |
E não tem um maior exemplo do "Toque Lubitsch" do que O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943). Nele, conhecemos a história Henry Van Cleve, interpretado por Don Ameche, que no final de sua vida chega ao Inferno. O único problema é que o Diabo não tem certeza das qualificações de Henry para entrar lá e é a partir daí que o rico conta tudo sobre sua vida, inclusive sobre sua vida ao lado de Martha, vivida por Gene Tierney.
Ernst Lubitsch, então diretor contratado da 20th Century Fox, tinha um projeto que estava desenvolvendo para Ginger Rogers, chamado A Self Made Cinderella que nunca saiu do papel. Naquele mesmo ano, em 1942, lhe foi oferecido o filme Margin for Error (idem, 1943) que ele recusou e foi para Otto Preminger.
Segundo o livro Ernst Lubitsch: Laughter in Paradise Por Scott Eyman, o alemão pensava em desenvolver uma comédia sobre a vida dos privilegiados quando descobriu a peça de Laszlo Bus-Feketé intitulada Geburtstag -ou seja Birthday em tradução, Aniversário - que estreou em dezembro de 1934 em Budapeste na Alemanha. Animado pelo conteúdo da peça, ele logo começou a desenvolver um roteiro com Sam Raphaelson e retirou as partes mais controversas.
Ernst Lubistch no set de filmagens ao lado de Don e Gene via o site DGA |
Um exemplo: na peça de Laszlo, além de Henry trair a esposa Martha, ele também a trai com sua irmã mais nova e pior: casa-se com ela. Ernst, que já morava nos EUA por um bom tempo, sabia que essa parte da história faria com que o personagem principal fosse odiado por todo o público e fez questão de acrescentar um lado mais humano ao protagonista.
Após meses de trabalho no roteiro, o título do filme passou de Birthday para Heaven Can Wait e algumas cenas mais entediantes, como a possibilidade de Henry se casar de novo, foram completamente excluídas. O comediante Don Ameche foi escalado como Henry, à um pedido especial de Darryl F. Zanuck, chefe do estúdio, que achava que Ameche seria perfeito para o papel.
Lubistch e seu amigo roteirista tinham Fredric March ou Rex Harrison em mente para interpretar Henry, e até conversaram com Joseph Cotten, mas foram ganhos pelo talento natural de Don, que os impressionou bastante. De acordo com o livro The American Film Institute catalog of motion pictures, o diretor queria Ginger Rogers como Martha, porém Gene Tierney acabou sendo escolhida pelo estúdio para interpretá-la. Durante as filmagens, Gene descobriu que estava grávida de sua primeira filha com o estilista Oleg Cassini, Daria, que acabou nascendo com graves problemas físicos e mentais.
Gene Tierney e Don Ameche em foto publicitária para o filme O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943). |
Outra grande estrela que recusou um papel no filme foi a atriz francesa Simone Simon. Ernst se aproximou dela para pedir que interpretasse a Mademoiselle, personagem que acaba "iniciando" Henry nos prazeres sexuais da vida. Segundo o livro The American Film Institute catalog of motion pictures, Simone teria recusado pois queria que seu nome fosse o primeiro nos créditos e que tivesse uma maior participação no enredo do filme.
Mas não foi bem assim! De acordo com a própria Simone, em entrevista para o jornalista Roy Frumkes, via o livro Women in Horror Films, 1940s Por Gregory William Mank, ela não queria atuar ao lado de Gene:
Que parecia um pouco comigo, mas era muito mais linda. E eu odiava ter que voltar pela pequena porta no estúdio onde eu, outrora, era tratada como uma grande estrela. - Simone trabalhou para a Fox entre 1936 a 1938.
No seu lugar, ficou a atriz da MGM, Signe Hasso. Desse mesmo estúdio, Lubitsch contratou Spring Byigton para interpretar a mãe de Henry. Reginald Gardiner seria Albert Van Cleeve, o primo noivo de Martha, porém Allyn Joslyn ficou com o papel. Charles Coburn, por fim, ficou como Hugo, avô do protagonista. Michael McLean, Scotty Beckett e Dickie Moore interpretaram as fases da infância e adolescência de Henry. Ademais, Tod Andrews, como Michael Ames, interpretou Jack, filho de Henry e Martha e Laird Cregar, escalado com perfeição, interpretou sua Excelência, ou seja, o Diabo.
Com tudo acertado, no primeiro dia da produção, em 1 de fevereiro de 1943, Ernst reuniu todos os funcionários e astros do filme e avisou:
Esses são os fatos. Eu imploro que vocês não mudem nada, porque esse é o jeito que eu gostaria. - Ernst Lubitsch: Laughter in Paradise Por Scott Eyman
O elenco principal de O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) |
Don Ameche chamava Lubitsch de "gênio", mas para Gene Tierney ele era praticamente um tirano. Isso porque o cineasta queria tirar da atriz "emoções genuínas" e para Gene se soltar e se deixar levar no papel era algo difícil, especialmente no começo de sua carreira. Um evento entre eles, no entanto, provou-se insuportável para Gene, como ela reconta em sua autobiografia Self Portrait:
Ele era um tirano no set, o mais exigente dos diretores. Depois de uma cena, que demorou do meio-dia às 17h para conseguir, eu estava quase em lágrimas escutando Lubitsch gritar comigo. No dia seguinte fui falar com ele, olhei-o nos olhos e disse: 'Senhor, eu estou disposta a fazer o meu melhor, mas eu não consigo trabalhar neste filme se você vai continuar gritando comigo.' Ele revidou: 'Eu sou pago para gritar com você', ao que eu respondi: 'Sim, e eu sou paga para aguentar - mas não o suficiente.' Depois de uma pausa tensa, ele gargalhou. A partir dali, nos demos muito bem.
No livro Ernst Lubitsch: Laughter in Paradise Por Scott Eyman, o ator Dickie Moore, que interpretou o jovem Henry, também foi só elogios ao diretor, deixando exemplos claros de sua paciência: quando ele fez um erro de novato, colocando o cigarro no bolso da calça e não do paletó e até quando Charles Coburn não conseguia achar sua marca no set quente e iluminado do Technicolor:
Ele tinha uma cortesia infalível, nunca erguia sua voz e era uma pessoa muito alegre. Ele sabia exatamente o que queria. Era um jogo de xadrez e ele sabia cada movimento que faria. Ele dava um ar de improvisação, mas não tinha improvisação nenhuma.
O humor depreciativo de Henry Van Cleeve torna até suas infidelidades algo completamente divertido e inconsequente, quase como se ele fosse apenas um menino travesso. Quem sofre é Martha, que o ama completamente, e interpreta o papel de esposa devotada durante todo esse tempo. Em O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943), Henry apenas dá valor à sua Martha quando é tarde demais. Mesmo no Paraíso e com todas suas falhas, ela ainda o ama, representando o amor incondicional que Henry muito provavelmente não merecia - e o que é melhor, ele sabe disso.Tanto no tempo quanto na emoção tinha um maior escopo do que qualquer outro filme que eu já trabalhei. - via The American Film Institute catalog of motion pictures
Gene e Don Ameche em cena de O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943). |
Naquele mesmo ano, em 11 de outubro de 1943, Don Ameche e Maureen O'Hara reencenaram O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) para o programa de rádio, Lux Radio Theatre, produzida por Cecil B. Demille, que você pode escutar na íntegra aqui! O filme teve duas reprises no rádio, de acordo com o fórum Nitrateville, em julho de 1945 com Walter Pidgeon e Susan Hayward e em agosto daquele ano, com Karl Swenson e Betty Winkler.
Em 1978, Warren Beatty estrelou, produziu e dirigiu um filme com o mesmo título, Heaven Can Wait, mas que não é uma refilmagem e não tem nada a ver com o clássico de 1943, tanto que no Brasil, a película foi traduzida como O Céu Pode Esperar (Heaven Can Wait, 1978).
Apesar do título em português já lhe dar uma ideia geral do filme, O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) é um clássico exemplo da direção impecável de Ernst Lubitsch, do talento de Don Ameche e Gene Tierney - ele ganharia, anos mais tarde, um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Cocoon (idem, 1985) - e de como uma história de comédia fantasiosa pode nos dizer tanto sobre a sociedade e seus costumes. E como o filme e seus astros brilham em Technicolor - é uma explosão de figurinos e cenários luxuosos.
O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943) é uma obra prima de Ernst Lubitsch e o público só tem a agradecer.
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