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O perturbador Caso dos irmãos Naves (1967)

*aviso: gatilho de tortura e violência

Joaquim e Sebastião Naves foram condenados por terem, supostamente, assassinado o primo Benedito Pereira Caetano, que desapareceu de Araguari, Minas Gerais, em 27 de novembro de 1937. Após diversas torturas, falsos-testemunhos e coação polícial, em especial pelas mãos do delegado militar Francisco Vieira dos Santos, os irmãos Naves ainda enfrentaram o escrutínio da mídia, de amigos e familiares. 

Em 1952, em uma reviravolta digna de filme, Benedito é encontrado vivo em Nova Ponte, Minas Gerais, e, enfim, é reconhecida a inocência dos irmãos. Sebastião, após o falecimento de Joaquim, recebeu uma indenização de 12 milhões de cruzeiros do sistema judiciário. Segundo o jornal O Cruzeiro, ao avistar o falso 'assassinado', o único Naves sobrevivente teve apenas uma pergunta: "Homem até que enfim você apareceu. Por que você fez isso?". 

Juca de Oliveira como Sebastião e Raul Cortez como Joaquim no filme          Divulgação

Trinta anos após uma das maiores injustiças do judiciário brasileiro, o diretor Luiz Sérgio Person lançou 'O Caso dos Irmãos Naves (1967)'. O filme exibe fielmente o período de ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, quando os irmãos Sebastião e Joaquim, interpretados por Juca de Oliveira e Raul Cortez, foram injustamente torturados e condenados por um crime que não cometerem. 

Em entrevista ao jornal Filme & Cultura, Luiz Sérgio Person explicou sua motivação ao abordar o crime: "É uma abstração de todo o conteúdo subjetivo; anseio e frustrações pessoas deixam de existir. Ao contrário de São Paulo/S.A não há personagens condutores. Há uma inversão de estrutura completa. Há mesmo uma obsessão de inversão, de reviravolta estrutural". 

Sebastião e Joaquim Naves - presos injustamente 

Versão da Polícia 

Os jornais da época foram rápidos em apontar a culpa dos irmãos Naves, mesmo sem corpo ou prova do crime. Joaquim e Sebastião eram sócios de Benedito na compra e venda de cereais e, ao descobrirem o seu sumiço, comunicaram-o à polícia. O tenente Francisco Vieira dos Santos, vivido por Anselmo Duarte no filme, não acreditou na inocência deles, ainda mais após saber da quantia de 90 cruzeiros que sumiu. Ele os acusou de terem matado Benedito e ficado com o dinheiro. 

Segundo reportagem do jornal Lavoura e Commercio, de Minas Gerais, em 1939, que retrata a versão errônea e oficial da polícia, os irmãos teriam feito uma emboscada para 'roubar' o primo, que vendeu uma safra de arroz que não lhe pertencia. Na madrugada do dia 28 de novembro de 1937, eles foram até a festa de inauguração da Ponte do Veloso; com barraquinhas, músicas, comes e bebes; e teriam convencido Benedito a fazer um passeio até Uberlândia. 

Sob o pretexto de se refrescarem, os cúmplices teriam parado o caminhão de trabalho na ponte 'Pau Furado', no rio das Velhas. Joaquim então, teria levado a corda e os dois enforcaram Benedito que, após a morte, foi revistado e teve seu dinheiro roubado. O cadáver foi jogado no rio e nunca mais foi encontrado. 

À esquerda, o oficial Francisco; à direita, Benedito, o 'falso assassinado'

Torturas e sentença

Para a polícia chegar à essa versão falsa dos eventos, os irmãos Rosa Naves foram brutalmente torturados. Inclusive a mãe deles, Ana Rosa Naves. Em reportagem para o jornal A Noite, os fatos narrados são ainda mais monstruosos do que os exibidos no filme 'O Caso dos Irmãos Naves (1967)'. 

O tenente Francisco prendeu, mesmo sem provas, os irmãos Naves em 24 de janeiro de 1938 que, primeiro, sofreram terríveis espancamentos. Como Sebastião e Joaquim não confessavam, ele mandou prender a mãe deles e, durante cinco dias, os três ficaram sem comer e nem beber. Na sequência, foram amarrados em uma cruz e, logo, depois, pendurados de cabeça para baixo, nus, no forro da delegacia. 

Ana Naves passou mal e ficou presa na cela enquanto os filhos foram levados e enterrados vivos em um local próximo, com apenas a cabeça para fora. Depois, os oficiais prenderam cordas em partes sensíveis dos corpos deles e os obrigaram a tomar urina misturada com fumo e sal amargo, além de ingerirem vidro quebrado com água. 

Ana Naves mostra como foi maltratada pelos policiais                    A Noite

O oficial Francisco seguiu com as torturas, arracando os dentes dos irmãos e passando mel neles para serem picados por abelhas, maribondos e formigas. Ana, antes de ser libertada, sofreu ainda ao ter uma coroa de arame farpado amarrado na cabeça. Por intermédio de um pau, o tenente apertava a coroa para forçar uma confissão: a senhora tinha 70 anos de idade na época e também foi obrigada a ficar nua do lado de uma fogueira. 

Salvina, esposa de Sebastião foi presa e torturada, além de ser ameaçada de estupro, impossibilitada de cuidar do filho de apenas 9 meses do casal, que faleceu. Não satisfeitos, os policiais obrigaram Sebastião e Joaquim procurar pelo 'corpo' de Benedito na água, permanecendo lá até quase se afogarem. 

Ana Naves, assim que foi liberada, procurou de novo o advogado João Alamy Filho, na obra vivido por John Herbert, que não havia se convencido da inocência dos irmãos outrora. Com a narrativa da barbárie, ele decidiu defendê-los e conseguiu um habeas corpus que não foi cumprido. Os soldados Heitor, Damásio, 'Turquinho', Ladisláu e 'Mão de Fogo', cúmplices das atrocidades, tinha a mesma narrativa: os Naves estão livres. Eles, no entanto, estavam amarrados no porão da delegacia sofrendo dores inimagináveis. 

Anselmo Duarte e Raul Cortez em cena do filme 

Julgamento e desfecho

Joaquim Naves foi o primeiro a confessar o crime, após pensar que o irmão Sebastião havia sido assassinado durante mais uma sessão de tortura. Em 3 de fevereiro de 1938, após mais de um mês de martírio, o 'Bastião' apenas concordou com a versão da polícia. 

No dia 14 de fevereiro daquele ano, o caso foi ouvido por um juiz no local e os irmãos se declararam culpados. Ana, apesar de ter sido apontada como cúmplice por suas próprias noras e filhos, inclusive por amigos próximos que foram ameaçados, continuou a afirmar que era inocente e que foi vítima de tortura. Em abril de 1938, torturaram Sebastião mais uma vez para tentar encontrar o dinheiro, mas sem êxito.  

O primeiro julgamento ocorreu em 27 de junho de 1938 e os jurados optaram pela inocência dos irmãos em decisão de 6x1. A promotoria apelou no dia seguinte e os Naves continuaram na prisão. A decisão favorável veio mais uma vez em março de 1939 - desta vez Joaquim e Sebastião confirmaram sua inocência. 

Sebastião sempre lutou por sua inocência 

Os promotores, no entanto, conseguiram a anulação do júri popular e, em 4 de julho de 1939 os Naves foram condenados pela Câmara Criminal do Tribunal de Apelos de Minas Gerais a 25 anos e seis meses de prisão. Depois de um ano na prisão de Araguari, eles foram transferidos para a Penitênciária Agrícola de Ribeirão das Neves, onde a pena foi reduzida para 16 anos. 

Tribunal onde os irmãos foram julgados; cadeia onde ficaram por oito anos 

Em 12 de agosto de 1946, Joaquim e Sebastião foram soltos sob condicional por bom comportamento. Os dois retornaram para Araguari, onde as esposas os aguardavam, mas Joaquim sofreu o pior com as torturas: em 28 de agosto de 1948 ele faleceu por problemas estomacais após ingerir substâncias tóxicas. Ele deixou a esposa, Maria Rosa e a filha, Iolanda. 

Francisco Vieira dos Santos, o terrível algoz dos irmãos, também faleceu em 25 de maio de 1949, mas Sebastião continuou a lutar por Justiça. Em julho de 1952, Fernando Naves, primo dos irmãos, avistou Benedito, agora com o nome José Goiano, em Nova Ponte e armou uma diligência para encontrá-lo. Ele foi preso prontamente pelo Cabo Antonio Marques - Benedito foi encontrado dormindo na casa da irmã. 

Ana e Sebastião viveram para ver a Justiça sendo feita 

Benedito tentou se defender e, em depoimento, afirmou que teve os 90 contos de réis roubados e, por isso, fugiu da cidade e passou um tempo na Bolívia. Essa versão, no entanto, foi desmentida por seu próprio pai, e o fazendeiro Edilson Alves da Cunha revelou que ele sabia do caso dos irmãos Naves, mas preferiu não se meter. O primo tentou se matar quando estava preso, mas sem sucesso. Ele foi solto alguns meses depois. 

Após a descoberta da inocência dos irmãos, o advogado Alamy entrou com um processo de indenização contra o Estado de Minas Gerais. Em 14 de outubro de 1953, o Tribunal de Justiça anulou a condenação, mas foi apenas em 8 de janeiro de 1960 que o Supremo Tribunal Federal concedeu 12 milhões de cruzeiro à Sebastião e sua família. 

Sebastião faleceu em 10 de maio de 1963, mais de dez anos após provar sua inocência, deixando as filhos Ivaldo, Geralita, Gecilda, Geralda e a neta Neide. Sua mãe, Ana, faleceu aos 97 anos de idade, dois meses depois. Em entrevista para o A Noite, ela diz que não sentia raiva de Benedito e nem do delegado: "As atrocidades que sofri entrego a Deus e não desejo de modo algum comentar. Quero esquecê-las". 

Em 1958, no programa 'Está é Sua Vida' da TV Itacolomi, ele recebeu um caminhão de presente

Nos anos 50, Sebastião e a mãe Ana se tornaram celebridades instantâneas, recebendo presentes, visitas do presidente Juscelino Kubitschek e até aparecendo na televisão. Em 1958, durante o programa 'Esta é sua Vida', da TV Itacolomi, o irmão Naves sobrevivente ganhou um caminhão de presente para garantir a subsistência de sua família. 

Em 1960, João Alamy Filho lançou o livro 'O Caso dos Irmãos Naves' e o filho mais velho de Sebastião, Ivaldo Naves, jurou se formar em direito para honrar a memória do pai - tornando-se um dos advogados mais respeitados de Minas Gerais. Benedito perdeu toda a família, a esposa e seus dois filhos, em um acidente de avião e, então, desapareceu de Araguari e começou a vagar como um sem-teto. 

Sebastião e Benedito se reencontram; Sebastião no túmulo do irmão Joaquim 

O filme 'O Caso dos Irmãos Naves (1967)', escrito por Person e Jean Claude Bernardet narra todo o fato com uma precisão cirúrgica e escancara a incompetência do poder judiciário, no auge da ditadura do Estado Novo - Getúlio Vargas, inclusive, negou à soltura dos irmãos em 1943. Coincidentemente, a obra foi produzida em 1966, no começo da Ditadura do Brasil, durante a vigência do governo de Castelo Branco - e é um prenúncio das torturas que estavam por vir. 

Em depoimento para a revista Aplauso, da TV Cultura, Jean explica: "O filme seria absolutamente fiel aos fatos dos anos 30, mas se tornava uma metáfora política de nosso presente. Denunciaríamos a tortura e a arbitrariedade. Durante toda a elaboração do filme, nunca se perdeu de vista essa perspectiva, a tal ponto que passamos a qualificar os Naves de 'filme Castelo Branco'". 

'O Caso dos Irmãos Naves (1967)' apresenta a tortura sofrida pelos irmãos de forma honesta e nunca gratuita. A narrativa, embora seja engessada, exibe os fatos de forma cronológica, apenas 'escapando' da censura por, justamente, ter sido lançado antes da instauração do AI-5, em dezembro de 1968. 

A família Naves nos anos 50 após toda a tragédia 

A tragédia foi retratada na TV Tupi em 1969 na série 'Os Grandes Erros Judiciários', com Flora Geni interpretando a esposa de Sebastião. O caso também foi exibido na 'Linha Direta' da TV Globo em 2003 e na série de reportagens da Cultura 'Os Olhos Que Condenam no Brasil'. 

'O Caso dos Irmãos Naves (1967)' continua, mais atual do que nunca, quase 90 anos depois. O que será que nós, como sociedade, podemos fazer para mudar essa história?





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