O fascínio de Harry Belafonte com o Brasil, em especial com a Bahia, é anterior a visita dele em 1970 ao lado da esposa, Julie, e os filhos David e Gina, além do filho de amigos, Ted, de 16 anos. Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado, foi uma das pessoas que recepcionou o astro e, no livro A Casa do Rio Vermelho, conta como a estrela de 'Carmen Jones (idem, 1954)' ficou tão interessada pelo nosso país.
Harry Belafonte em Salvador, Bahia |
Os pais de Julie, russos erradicados nos EUA, foram os primeiros a introduzir o Brasil em suas vidas: eles conheceram Carybé e a esposa dele, Nancy Bernabó, quando o artista foi pintar um mural no Aeroporto John F. Kennedy em Nova York, nos EUA, após ganhar um concurso internacional. A partir daí, se formou uma amizade e Harry ficou encantado com um dos quadros que o brasileiro presentou a seus sogros.
O interesse de Harry pela Bahia se aprofundou ainda mais quando ele pôs as mãos no romance 'Jubiabá' de Jorge Amado e, depois disso, seu amor pelo Brasil só crescia. "Na realidade, estou viajando para lá especialmente para investigar a música, a pintura, a literatura, a poesia", afirmou o astro quando embarcou para o Brasil, em seu jatinho particular, direto de Nova York, EUA. Ele chegou a Salvador, Bahia, em 31 de julho de 1970.
Harry Belafonte desembarcando no Brasil |
A visita de Harry Belafonte já era anunciada desde o dia 25 de julho, mas o astro deu alguns alarmes falsos. Diferente de seus colegas, ele evitou o Rio de Janeiro e São Paulo, em um primeiro momento, e fez uma reserva no Hotel Plaza, na Bahia, para duas suítes no dia 25. Depois, de acordo com O Jornal do Brasil, ele adiou as reservas para o dia 31 e os jornalistas e a mídia fizeram uma vigília de 13 horas no Aeroporto 2 de Julho, atualmente Aeroporto Internacional de Salvador. O astro e a família chegaram no dia 31 de julho às 23h.
Indagado pela mídia no desembarque - vestindo uma camisa colorida, blusão de veludo cor de mel, calça creme e sapato branco - por que escolheu passar as férias em Salvador, Harry explicou: "Vim à Bahia porque Salvador é a cidade mais africana da América Latina e, aqui, entre os negros eu me sinto bem". De última hora, ele cancelou a reserva no Plaza e escolheu o Hotel Bahia, prezando pela discrição e negando, inclusive, atender uma ligação do futuro governador Antonio Carlos Magalhães. Belafonte garantiu que atenderia à todos assim que dormisse o suficiente.
Harry disse, ainda, que conheceu o samba e o Brasil "há muito tempo" e que não tinha um roteiro para a viagem, procurando curtir sem amarras.
Harry em Salvador ao lado dos filhos, da esposa e de Jorge Amado |
Harry acompanhado por Carybé, Jorge e a esposa Zélia no Mercado |
Belafonte e família no Farol da Bahia e no Mercado Popular |
Há 20 anos eu trabalhei no Brasil na companhia de ballet de Katherine Dunham, onde nos apresentamos em Recife e no Rio de Janeiro. Desde então tenho paixão pela Bahia, que só conhecia de ouvir falar. Sempre falei ao Harry que aqui era um lugar encantador e rico em manifestações populares.
Harry com seus amigos em Salvador |
Naquele mesmo dia, eles foram apresentados à diversos artistas baianos como Márcio Cravo e Valdeoir Rego, na própria casa de Amado. Julie, inclusive, aprendeu a dançar o igexá com Rego enquanto o marido aproveitava o uísque e uma mesa de queijos e vinhos. Jorge Amado afirmou que a visita de Harry comprovava que "a Bahia é realmente a tal. Isto me deixa muito satisfeito, pois sempre disse que terra como a Bahia não há".
O casal aproveitou as andanças nas feiras de artesanato e comprou estribos, um oratório dourado para santos, e para o filho David, uma antiga garrucha de dois canos. Na segunda-feira, dia 3 de agosto, a família Belafonte foi assistir no Centro Folclórico da Bahia, do qual Rêgo é diretor, uma apresentação de maculelê e capoeira. Dorival Caymmi era esperado na terça-feira, 4 de agosto de 1970, para conhecer Harry e sua família, mas houve um contratempo.
Harry com o berimbau que tanto o fascinou |
Nos dias seguintes, Belafonte visitou a cidade de Cachoeira, almoçou na casa do futuro governador Antonio Carlos, onde estava o atual Luís Viana Filho. Durante o lanche, ele aproveitou algumas batidas de limão, aracajés, abarás e beijus. Foi lá que ele conheceu o Camaféu de Oxóssi, de quem ganhou um berimbau de presente - os dois logo emprovisavam um samba, após o ator receber alguns ensinamentos. O cantor disse, ainda, que amou a música brasileira e estava aproveitando muito a viagem e "se não tivesse gostado já teria voltado aos EUA".
No dia 7 de agosto, o 'Rei do Calipso' foi presenteado com um coquetel em sua homenagem por Nair e Genaro de Carvalho no Hotel Bahia, onde estava hospedado. Foi lá que ele teria conhecido Caymmi, mas não há uma confirmação exata desse encontro. Para a revista Veja, no entanto, Belafonte expressou sua vontade de conhecer o artista: "para ouvi-lo ao vivo, pois já o conheço muito". Posteriormente, revistas confirmaram o encontro.
Harry no ateliê de Genaro em Salvador, Bahia |
De acordo com Zelia Gattai, Harry tinha um senso de humor travesso e era bastante querido por todos, em especial Amado e Carybé. O músico ainda recebeu jantares especiais de Carlos Bastos, Almir, além de almoços de Jenner Augusto e Luísa. No terreiro de Gantois, inclusive, ele participou de uma festa e "emocionado, dançou com as filhas-de-santo em transe".
Para a despedida da Bahia, Zélia e seu amado Jorge ofereceram uma grande festa na sua residência, hoje conhecida como A Casa do Rio Vermelho - e ponto turístico obrigatório em Salvador, Bahia.
Rio de Janeiro - agosto 1970
Harry no dia 9 de agosto em desembarque no Rio de Janeiro |
Quando me convidarem virei atuar no Brasil. Até agora não recebi nenhum convite - garantiu Harry em entrevista.
Estou profundamente envolvido com a revolução negra nos EUA, mas minhas atividades estão ligadas imediatamente aos estudantes e ao movimento pacifista. Sou contra a Guerra do Vietnã, contra a exploração dos negros, índigenas e dos latinoamericanos. - entrevista para Jornal do Brasil.
Harry Belafonte em conversa com a imprensa |
O astro de 43 anos, mais feliz do que nunca, ainda disse que já admirava o Brasil antes de sua visita e creditou Jorge Amado e Caymmi por lhe transmitir "a alma e o coração do povo brasileiro", afinal ele levaria apenas impressões superficiais se não fosse por eles. Harry explicou, ainda, que, ao seu ver, nos países que houve escravidão há "espiritualmente um problema racial em todos" e que não havia qualquer negro em papel de destaque na televisão brasileira, acrescentando que a "TV e o rádio do país são influenciados por conceitos norteamericanos".
Pelé é simplesmente o maior jogador de futebol do mundo. Por que na televisão não se veem negros em papeis principais? Vi televisão, todos os dias, no Brasil. Apareceu uma negra, mas no papel de empregada doméstica. - Harry em bate-papo em jantar com Humberto Saad via Manchete.
Sobre a música brasileira, ele disse que pediu algumas canções para Dorival Caymmi já que "para alguém como o artista desta qualidade a gente não pede coisas determinadas". O cantor diz que considera a música norteamericana "muito complicada", não sabendo explicar sua aceitação no Brasil, por representar uma cultura diferente apesar "do que existe de bom por aqui". Ele ainda citou Carmen Miranda e Jorge Ben como os brasileiros mais conhecidos no exterior.
Harry Belafonte e o filho em coletiva de imprensa |
Harry garantiu, naquela época, se focaria na produção de filmes, citando Sidney Poitier, Yves Montand (indo para Paris para conversar com ele) e Marlon Brando. O astro faria adaptação de um livro, escrito especialmente para ele por Jorge Amado, mas o projeto não decolou. Ele ainda ficou de voltar à Bahia para um show especial no Teatro Castro Alves - que não ocorreu.
Indagado sobre a beleza da mulher brasileira, Belafonte não se acanhou com a presença da esposa e garantiu: "Nas ruas do Rio a minha cabeça gira como uma porta giratória de hotel, tantas são as mulheres. Eu tenho também, pela minha atividade, contato com mulheres bonitas, mas sei que minha mulher é inteligente e compreende isso".
Belafonte afirmou que as danças de candomblé que verificou em Salvador já tinha visto no Haiti e na África. No dia seguinte, 11 de abril, que seria o dia de sua partida, o artista decidiu aproveitar tudo que tinha direito: foi a Galeria Bonino para comprar um Carybé e levou, também, uma pintura de barca de Newton Resende. Na sequência, ele visitou pessoas da embaixada americana, encontrou Jorge Amado e a esposa à bordo do Pasteur e, à noite, jantou na casa de Humberto Saad.
Harry, Julie e Jorge na casa do escritor em Salvador, Bahia |
Segundo O Tribuna da Imprensa, lá Harry encontrou Wilson Simonal e Jorge Ben, que o levaram para conhecer o sambódromo Osvaldo Sargentelli. Antes, o astro teve uma pequena discussão sobre segregação racial no Brasil, no qual Simonal, conhecido como o 'Harry Belafonte brasileiro', tentava convencê-lo de que isso não existia no Brasil. Prontamente, ele teria aberto um revista e indagou: "Cadê os pretos?".
Em entrevista para A Manchete, no dia 11 de agosto, ele ainda abriu o jogo sobre seu parecer do problema de drogas e poluição, afirmando que a solução apenas seria encontrada quando "afetasse os mais ricos". Harry, demonstrando todo seu respeito por Jorge Amado, adiou sua partida do Brasil para o dia 12 de agosto para comparecer à uma homenagem no apartamento deles em Rodolfo Dantas.
Zélia Gattai revela que, ao sair no andar deles, Belafonte ficou chocado com uma estatueta de porcelana do vizinho de porta: a figura de uma mulher deitada ao lado de um cão galgo. De seu jeito bem arteiro, ele retirou a jaqueta que vestia e embrulhou o objeto, afirmando: "Não repare no presente, lhe ofereço de coração".
Todos explodiram em uma gargalhada sem tamanho ao ver o rosto de Jorge Amado.
Harry Belafonte em sua partida do Brasil |
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